Gazeta da Torre
Fonte: Xosé Hermida
Pela segunda vez em sua vida, Luiz Inácio Lula da Silva
se tornará um presidiário. A primeira ocasião foi há 38 anos, quando a polícia
da ditadura militar brasileira o acordou uma noite em sua casa e o levou depois
que, como líder de uma greve de operários metalúrgicos da área metropolitana de
São Paulo, havia posto o regime em xeque. Quase quatro décadas mais tarde, Lula
voltará a ficar confinado entre grades, agora acusado de ter se aproveitado de
seu cargo como presidente do país para obter benefícios pessoais.
O herói sindical, o ídolo de massas, o presidente mais
popular que o Brasil teve até hoje, dentro e fora de suas fronteiras, entrará
agora na prisão sob uma acusação ignominiosa: aceitar como presente um
apartamento na praia de uma construtora favorecida com contratos da empresa
estatal Petrobras. A imagem vai muito além da de um dirigente político preso. É
difícil escapar dos tópicos para defini-la: uma página nos livros de história,
o final de uma época, a queda de um herói.
A primeira coisa que Lula fez depois de divulgada a ordem
do juiz Sérgio Moro de sua ida imediata para a prisão foi correr para se
refugiar na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, ali
onde tudo começou. Protegido pelos camaradas, incentivado por centenas de fiéis,
abraçado por militantes mergulhadas em lágrimas, entre as lembranças de décadas
de luta operária. Quase ao mesmo tempo, as agências internacionais de notícias
começaram a distribuir um álbum de fotos que resumia os anos gloriosos do outro
Lula. Aí já não aparecia o aguerrido líder sindical, mas o estadista que tinha
meio mundo na palma da mão. Nessas imagens resplandecia o Lula estrela das
cúpulas internacionais, o líder que confraternizava tanto com George W. Bush
como com Barack Obama, o que arrancava sorrisos do presidente francês Jacques
Chirac, o que desatava a chorar depois da designação do Rio de Janeiro como
sede dos Jogos Olímpicos.
Lula não só conseguiu se erigir no líder político que
consegui os mais elevados índices de aceitação da história do Brasil –mais de
80% no final de seu mandato– como também foi um dos líderes mais unanimemente
elogiados no planeta. Por onde quer que fosse, somente provocava aplausos.
Entre a direita, por submeter-se à ortodoxia econômica. Entre a esquerda, por
ter tirado da miséria milhões de brasileiros até então abandonados à sua sorte
pelos sucessivos governantes de um dos países mais desiguais do mundo.
O Lula que volta à prisão, 38 anos depois, ainda conserva
muitas coisas do ousado sindicalista capaz de arriscar tudo em plena ditadura
militar. Mas agora carrega cargas muito pesadas em suas costas. Primeiro foi o
caso do Mensalão, a descoberta de que seu Governo se dedicava a subornar os
membros do Congresso para comprar apoio político. Mais tarde, as evidências de
que, sob seus mandatos, a petroleira estatal Petrobras atuava como o cofre do
qual extraiam seu caixa o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, entre os
quais alguns representantes do pior da política tradicional brasileira. Por
fim, as vantagens pessoais para ele e sua família: os presentes das
construtoras, os negócios dos filhos, as conferências pagas por empresas a
preço de ouro.
E, apesar de tudo, Lula continua sendo um herói para
milhões de brasileiros. Seus partidários mais obstinados cultivam por ele uma
devoção de proporções místicas, como se já não fosse um simples homem, nem
sequer um dirigente político, mas a essência mesma do povo brasileiro feita de
carne. O próprio Lula vinha alimentando essa ideia nos seus comícios dos
últimos meses e voltou repeti-la na sua despedida deste sábado em São Bernardo:
“Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia”. Sem cair nesses devaneios,
há também muitos milhões de brasileiros, os eternamente deserdados, os
condenados durante gerações e gerações a viver na miséria enquanto uma pequena
elite reparte entre si as imensas riquezas do país, que veem em Lula, sem mais
nem menos, o único presidente que se preocupou de verdade em melhorar suas
condições de vida.
A legião de seus opositores e detratores que cresceu nos
últimos anos tampouco escapa dos exageros e dos delírios. Outros muitos milhões
de brasileiros estão tão obcecados com a ideia de colocar Lula entre as grades
que mostrar o desenho do presidente fantasiado com o traje listrado se
converteu em uma espécie de fixação maníaca de todos os protestos contra ele
nos últimos anos. Encarcerar Lula é como uma conquista definitiva, como
enclausurar o diabo na garrafa, curar todos os males do Brasil, erradicar para
sempre a corrupção que, segundo o modo de ver desse setor da população, não
existia no país até que o líder do PT chegasse ao Governo. Seu ódio também
alcançou níveis bíblicos, como demonstrou o agora ex-prefeito de São Paulo, o bilionário João
Dória Jr, em uma mensagem gravada depois de saber que o ex-presidente irá para
a prisão: “esta decisão lava a alma dos bons brasileiros”, proclamou. “Chegou
sua hora, Lula. "O Brasil começa a respirar democracia, respirar justiça,
e você, Lula, vai respirar na cadeia"
Por mais que os brasileiros estejam profundamente
divididos, neste sábado haverá algo que os une: quando virem Luiz Inácio Lula
da Silva entrar no confinamento estarão vendo algo mais que um ex-presidente do país,
algo mais que um dirigente político, algo mais que um simples homem.
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